quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

UM ENSAIO SOBRE O CORPO

Trechos do livro Por exemplo a cadeira - ensaio sobre as artes do corpo, de Antonio Pinto Ribeiro (Lisboa-Portugal)

"Um corpo não é uma entidade abstrata, um receptáculo onde se podem colocar atributos tais como alto, baixo, forte, magro; não é uma esfera a que se circunscreve o ser num determinado tempo, mas é uma energia, onde se inscrevem circulações, substâncias, forças, pigmentações, comportamentos resultantes de treinos, de técnicas e de linguagens a que está permanentemente sujeito. Esta é uma constatação essencial e uma alteração radical no modo de colocar o problema do corpo no final deste século [XX].

A par desta constatação, uma outra: a de que não existe um corpo padrão, mas existem corpos (...), corpos nos quais é possível detectar diferenças de funcionamento e de comportamento, às vezes radicais. É por isso que se pode afirmar a existências de corpos multiculturais fracionados por diferenças que provocam tensões. É por isso que os corpos 'Benetton', aplanados nas suas diferenças pelo design publicitário, numa permanente e apagada inexpressão, são uma falsidade."

Mas o percurso de assunção desta diversidade e as expectativas que hoje estes corpos e a sua produção geram têm história, recente, que corresponde à história de uma queda: do corpo abstrato e desmaterializado ao corpo físico, energético e corporal (...)

Existe uma arqueologia desta descida, enquadrada, aliás, na nova paisagem urbana do final do século passado [XIX]: os novos espaços - a escola, a prisão, as avenidas, os passeios públicos -; os novos trabalhos - os mineiros, os operários, os professores -; as novas práticas corporais, os novos vestuários e os novos materiais. A Literatura deu disso testemunho: Viagem ao centro da Terra de Júlio Verne e Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll foram expressão dos novos imaginários desta descida.

Na Ciência, por seu lado, as primeiras radiografias inventadas por Rontgen não só expressam a vontade de mergulhar até o interior do corpo, 'à procura da alma' (...).

(...) o fato - hoje aparentemente banal - de Isadora Duncan, coreógrafa e bailarina, dançar descalça não só quis expressar uma ideia de liberdade corporal, mas, mais que isso, significa a abdicação secular da elevação pelo corpo ou o ter como ambição máxima o elevar-se, tornar-se aéreo, desincorporar-se. 
Com Isadora, o corpo iniciava a sua descida à terra, ao humano, inclusivamente ao corpo étnico e sexualizado, como o reforçou, de imediato, Nijinski, coreógrafo e bailarino dos Ballets Russes (...)

Há objetos que, embora funcionando como adereços ou cenários, adquirem, pelo recurso a que são sujeitos, valores de metáfora denotativos deste percurso. É assim que se podem ver as escadas e os elementos descendentes sempre presentes nas obras de Meyerhold e de Martha Graham, embora já consubstanciados esta ideia da descida dos problemas das arte para o reino do humano, e que são posteriormente reforçados com a introdução de um objeto que se torna uma presença permanente e classificadora das Artes do Corpo depois do pós-guerra. Trata-se da cadeira como objeto pertença da dança, do teatro e da performance.

As cadeiras não são todas iguais, não assumirão todas as mesmas funções simbólicas e cênicas, mas constituem uma presença metafórica indicativa da relação das Artes com o seu tempo (...)
No entanto, a cadeira funciona principalmente, na lógica destas artes modernas e contemporâneas, como um 'ready made' que transporta para a cena a nostalgia do tempo da reflexão, do ócio criativo e da família ou dos rituais à volta da mesa, da comunidade, bem como a 'coisificação' da energia (...)
A cadeira toma assim o espaço do ancoradouro para onde converge toda a atividade humana enquanto espera, aguarda, porque uma época - a da Arte Modernista - de atividade se seguiu uma época de estaticismo.

(...) essa é a grande metáfora do uso da cadeira. Existe uma retração da atividade motora as artes do corpo, sinal de uma contenção de energia. Recorre-se à presença da cadeira para descansar, mas este recurso significa porventura a criação de uma 'époché' a figura fenomenológica pela qual o conhecimento é suspenso por um tempo, possibilitando uma ação futura."


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